A voz da consciência (Conto que podia ser de Natal)…
_ Preciso fazer
alguma coisa para não enlouquecer…
Olha a rua através dos vidros entreabertos, e
repara numa cadeira de rodas que desliza vagarosa pelo passeio fronteiriço. O
seu olhar podia prender-se no homem de meia-idade, sem pernas, que encontrou na
cadeira o seu meio de locomoção. Mas não: Jamais repararia no homem, afinal
toda a sua existência foi comandada pelo ´´ter`` sempre mais e mais, nem que
fosse o esqueleto que agora a atormenta!
_ Que
queres tu? Logo tu que encontraste na opulência o meio de vida!
A voz masculina soou tranquila, de uma
tranquilidade aparente, é certo! Enquanto o seu íntimo fervilhava de asco.
Digo bem asco: apesar de ser seu amigo, ainda
assim, por vezes atreveu-se a criticar-lhe os devaneios… Como se chamar
devaneios a verdadeiras aberrações, que normalmente colocavam a vida dela e
daqueles que a rodeavam em causa, fosse normal.
Mas também: Como se a normalidade fizesse
sentido, ao olhar agora o seu rosto enrugado!
_Os retalhos da minha
vida assemelham-se a marionetas, e dançam tresloucada mente no meu passado. Por
acaso isso é pecado?
Ou é impressão, ou ele juraria que está prestes a chorar. Conhece-a desde criança e já nessa idade era difícil algo ou alguém arrematar-lhe uma lágrima.
_Manipulaste tudo e
todos em redor, e foi assim uma vida inteira. Ainda recordo como se de hoje se
tratasse: O dia em que encenaste a tua morte. Tinhas quando muito vinte anos,
nunca cheguei a saber onde foste buscar a morta…
_Qual morta, mas quem é que morreu?
_Esquece, afinal de que serve remoer recordações, e as que tenho contigo são os meus pecados. Mas podes chorar, vamos chora verás que não dói. Ou melhor, quando se chora só a alma dói.
Vira-lhe
as costas há setenta e cinco anos que a olha de frente, mas está cansado, tão
cansado que só lhe apetece dormir.
Ensaia a retirada, mas por um breve
instante fica indeciso. Qual o caminho a escolher? Se subir os degraus tudo
será fácil, mas a facilidade sempre foi o jogo dela, contudo se retorcer e sair
pelos fundos, sabe que daqui em diante nada será igual, olha-a novamente de
soslaio…
Pressentindo a sua indecisão ela ri a
bandeiras despregadas, e a sua voz deixa transparecer o desprezo por tudo
aquilo que lhe começa a ser sagrado.
_Sempre te vi como um frouxo e sempre me
deitastes as culpas por assim ser. E como te disse preciso fazer alguma coisa
para não enlouquecer.
Novamente fixa o olhar na cadeira de
rodas e finalmente repara no homem de meia-idade.
_ Chega aqui.
Como que movido por um telecomando, ele
aproxima-se da janela.
_ Reconhece-lo?
_Sim, quando era novo tinha imensos sonhos.
_Não me digas que a culpa foi minha.
É ele que agora começa a chorar, as lágrimas caiem em cascata e tornam o seu rosto ainda mais velho e enrugado,
enquanto ela continua a rir e vai desfiando num rosário frio e calculista,
palavras cruas mas ao mesmo tempo certeiras no propósito.
_Soube-te bem as mordomias, a vassalagem com
que te olhavam e obedeciam, acima de tudo soube-te bem o dinheiro. Ah! O
bendito dinheiro, também te satisfazias sempre que mentias por mim, sempre que
olhavas o mundo de um patamar mais elevado. Mas olha agora para ele: Não passa
de um pobre coitado!
_Cala-te de uma vez por todas. Grita e dá três
passos atrás saindo pela porta dos fundos!
”””
É de
manhã quando abre os olhos. Não! Não é manhã: A claridade vem de uma lâmpada
que pende sobre a sua cabeça. Atarantado olha em redor mas tudo lhe é estranho,
estranha sobretudo a luz fria da lâmpada que o deve ter cegado durante toda a
sua vida...
_Está a acordar! Novamente é uma voz de mulher
que o traz à realidade.
Ao que parece há mulheres por todo o lado
neste dia!
_ Senhor Alberto está a ouvir?
Abre e fecha a boca, mas nada de
prenunciar palavra, como é possível se ainda há pouco falava a bandeiras
despregadas!
_Bem-vindo de volta senhor Alberto, sabe que
dia é hoje?
Não lhe apetece responder, quer lá
saber de que dia se trata se hoje é o primeiro dia do resto da sua vida!
Passaram cinco anos desde o terrível acidente que o
atirou para uma cadeira de rodas, e hoje no dia em que faz cinquenta anos tem
uma enorme esperança no futuro. A reviravolta que a sua vida sofreu fez-lhe ver
que muito mais importante que estatuto é ser-se feliz, e contribuir para que os
outros o sejam também. Com o acidente que quase o levou para debaixo da terra
soterrou hábitos obsoletos. Passou a dar menos importância a bens materiais
para se debruçar sobre os bens da alma. Finalmente pode dizer que é um homem
realizado, e o caricato está na estranha conversa que teve com a sua
consciência há cinco anos atrás. Até então quem o conhecia afirmava que não
tinha consciência, mas estavam enganados. Lá ter consciência, ele tinha,
distorcida, mas tinha!
Afirmaram na altura que esteve em morte
cerebral… Uma grande peta é o que é.
Como pode ter morrido mesmo que por
breves instantes, se se lembra tim-tim por tim-tim de toda a conversa. Hoje rodeado
de amigos recorda também a frieza da escada que esteve prestes a subir, o que o
deixa a pensar na força que o fez voltar para trás…
Passados estes cinco anos lamenta sobremaneira
não poder falar dessa conversa com ninguém; ou ainda corre o risco de lhe
chamarem doido. À semelhança de quando ofereceu o casarão onde morava para que
nele fizessem um lar para os Sem-abrigo. Por essa altura foi morar no pequeno
apartamento de solteiro, onde hoje comemora o seu aniversário.
Foram imensos os pretensos amigos que o
intitularam de senil e assim se afastaram um a um, imagina se tivesse contado a
alguém que falara com a sua funesta consciência, enquanto esteve morto, e ainda
por cima se tinha visto com setenta e cinco anos!
Não tem saudades da sua existência
antes do acidente, nem dos pretensos amigos que desapareceram, ganhou mais do
que perdeu. Sobretudo respeito, ao invés de medo e bajulação, assim como passou
a ter em redor verdadeiros amigos, e mais dia, menos dia, irá partilhar com eles
o que realmente incentivou a mudança na vida de até então.
Sorri ao ter a certeza de que o
acidente que quase o atirou para a morte, o tornou num homem melhor, onde
finalmente a sua consciência o alerta para o que está bem ou mal, sem
malabarismos ou interesses.
Pode dizer em tranquilidade que coabita
em paz com a sua consciência.
Fim
Um conto de Antónia Ruivo, de
2014
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