- Maria: é o meu nome.
- Porquê, Maria?- Retorquiu a criança de
olhos arregalados.
- De onde eu venho todas as mulheres
são, Maria.
- Ah!... Acho que entendo, é uma espécie
de pacto, então… adeus Maria.
- Adeus, menino sem nome.
A criança já não ouviu, tinha-se
afastado em corrida arrebatada, restou à mulher um encolher de ombros, ao mesmo
tempo, que os lábios desenhavam um sorriso. Olhou uma última vez para o vulto
que se perdia no virar de uma esquina e continuou o seu caminho, até
desaparecer, também, por entre o nevoeiro do final de dia.
O menino, agora caminhava em passos tardios...
Depois do estranho encontro sentiu forças redobradas e havia calcorreando quase
metade da cidade. Vagueou sem destino, perdido, por ruas e ruelas iluminadas.
Era noite de Natal e ele não tinha para onde ir. Ao fim de algumas horas de
euforia, os pés cansados e doridos deixaram de responder ao apelo da alma e
passou a ser mais um vulto, por entre a multidão. Na azáfama das últimas
compras para a consoada.
Não importa se é Natal. Há muito que
perdera a conta aos dias ou às noites. Os dias passam sempre iguais e mal
escurece, quem o acompanha, num caminhar desvairado, é o cansaço. Enredado no mesmo
procurar, veste-se sempre daquele medo traiçoeiro. Tudo junto, turva-lhe a
mente e os olhos cor de mar. Não tem nome, nem família, não tem idade, e todos
os seus pertences se resumem a um saco de plástico, onde guarda religiosamente
uma caderneta de cromos do Benfica. Também lhe servem de almofada, num qualquer
recanto da cidade. Não sabe porque a mantém… Se até ela se torna um peso nas
horas em que a barriga se cola às costas.
Tudo o que precisava era de um sítio
quente e seguro para passar a noite mas, todas as casas estão iluminadas e
todas as portas estão trancadas. Através das vidraças embaciadas pela quentura
das lareiras, adivinha os sorrisos e os manjares natalícios, em mesa farta e
repleta de amor. Enquanto, ele, nos seus tenros anos nem nome tem. A malta
trata-o por olhos tristes e é só mais uma, entre as muitas crianças que
deambulam na grande cidade. Ele, tal como os outros, mata a fome como pode, ou
como deixam!... Nos dias em que se sente mais afoito encosta-se a uma qualquer
esquina e canta uma velha cantiga, que um velho pescador lhe ensinou. Uma
balada dolente, fala do mar e do vento e com um pouco de sorte, consegue
arrecadar umas moedas e termina o dia a matar a fome, na pastelaria junto às
docas. O empregado sorri, já sabe que será dia de engolir todos os pastéis de
nata que conseguir.
Noutros dias a sorte é madrasta, esses são
os dias em que os rapazes mais velhos lhe roubam as parcas economias. Mesmo
assim: agradece a Deus se o roubam sem o sovarem. Querem mais e ele é apenas…
mais um menino de rua. Crianças que ao sabor dos tempos deixaram de cativar os
transeuntes. Crianças que não tem mais. Só tem as pedras e as arcadas, o
desprezo e dois ou três dinheiros, o que é pouco, muito pouco para os rapazes
que já andam na ganza.
De tão cansado já não consegue articular
passo, também, para quê? Todos os lugares com algum aconchego estão ocupados.
Nos respiradouros do Metro acumulam-se corpos imundos, de roupas esfarrapadas,
tentando, assim, fugir ao frio. Nas arcadas dos prédios, famílias inteiras
dormem resguardados por caixas de cartão, alguns tem cobertores e esses foram
bafejados pela sorte. O menino sem nome só tem a roupa do corpo e um saco de plástico,
surripiado a um caixote do lixo e a velhinha caderneta dos cromos que, um dia encheu
de alegria um outro qualquer menino, bafejado pela sorte, vindo a terminar, tal
como o saco de plástico, num caixote do lixo.
Acabou sentado junto a uma árvore no
jardim de Alcântara, sobre o tronco duro e rugoso do velho jacarandá, assenta a
cabeça, inerte o fraco corpito enfiado no saco de plástico, tirita enregelado.
De olhos vidrados em direção ao nada. Até que os lábios roxos, pelo frio da
noite, esboçam um ligeiro sorriso e filtrado pela luz do candeeiro acabou de aparecer
um rosto conhecido!…
- És tu de novo menino sem nome! A
mulher sorriu para ele e pegou-lhe ao colo.
- Olá Maria, que bom que estás aqui.
Diz-me... Porque é que do sítio de onde vens todas as mulheres são, Maria?
- Maria é mulher primeira, Maria é
nome de Mãe.
- Então: tu és Mãe? Eu não tenho mãe.
- Tens sim, meu filho, eu também sou a
tua mãe e agora quero que te afastes de mim, que deixes o meu colo e vás ver o
sol.
- Mas!...É Natal, Mãe, no dia de Natal o
sol não costuma aparecer. Não me mandes para o frio de novo, por favor, lá não
há sol, ou o que há está ocupado por outro.
- Sabes, as mães não costumam mentir e
eu digo-te que neste Natal o sol brilhará. Por isso tens que ir.
O menino sem nome sorriu, obedeceu e deu
um passo em frente, ainda pensou em acenar a Maria mas ela tinha desaparecido…
Não sabe onde está!... Sente o calor
aconchegante do cobertor que lhe cobre o corpo, fraco, olha em volta e repara
numa grande janela, o sol espreita através do vidro. Nesse instante alguém
entra na divisão. O Menino sorri para uma desconhecida de olhos brilhantes que
lhe diz:
- Olá o meu nome é Maria e o teu qual é?
- Maria! Como a minha mãe. Eu não tenho
nome, mas… chamam-me olhos tristes.
- A partir de hoje terás um nome e vais
deixar de ser triste, o senhor doutor diz que já te podes levantar e que podes
vir passar o resto do dia de Natal a minha casa. Queres?
- Quero, se não der muito trabalho. E
posso comer pastéis de nata?
“”
Alfredo levanta-se do sofá onde se
sentara, com cuidado transporta nos braços a pequena Maria que acabara de
adormecer. Dirige-se à velha senhora que se encontra no sofá da frente e
segreda:
- O que ela ainda não sabe… é que eu sou
o rapaz dos olhos tristes, e tu, a sua avó, a Maria que me tirou da rua.
- O que ela ainda não sabe, meu filho… é
que tu foste um entre muitos meninos de olhos tristes que eu alimentei e tirei
da rua.
Alfredo baixou-se e beijou a testa da
velha senhora:
- Vamos dormir, mãe, já é
tarde.- Sorriu e acrescentou.- No próximo ano contarás a mesma história e
poderás acrescentar mais um ponto e quem sabe ela já compreenda.
Feliz Natal, Mãe.