Naquela manhã o branco das paredes afigurava-se mais branco,
emoldurado pelo sol matinal de um dia de Inverno, por entre as pedras da
calçada que os seus pés pisavam, em passos pesarosos mas controlados pelo peso
da velha pasteleira, nasciam a medo galrachos, ervas daninhas difíceis de
controlar, até nos passeios da aldeia.
Desconhecia, ou fingia desconhecer que era manhã de Natal, um ou outro
transeunte esporádico que com ele se cruzava quase sempre baixava a cabeça, enquanto
o cumprimentava num carinhoso bom dia. Assim acontecia todas as manhãs, ia para
mais de quinze anos, quando naquele dia fatídico um AVC lhe tolhera para sempre
os movimentos, ficando ainda assim com capacidade de locomoção vagarosa, fez
então da bicicleta a sua bengala, e passou a percorrer as ruas da pacata aldeia
alentejana todas as manhãs, quer fizesse sol ou chuva. A conselho do médico que
o havia avisado, ou se habituava a andar a pé, e a comer com moderação, nada de
fritos ou enchidos, e doces só de vez em quando, tinha também que cortar no
tabaco e no copito de vinho que eram o seu consolo, ou ia desta para melhor,
não restavam dúvidas.
Havia saído de casa, eram mais ou menos oito horas da manhã,
sobressaltou-se com os lamentos do sino da igreja a anunciarem as nove horas,
em compassadas badaladas. Como era possível só ter percorrido duas ruas e já
ser tão tarde. As suas pernas cada vez mais cansadas ficavam a cada dia que
passava, mais e mais preguiçosas, mas como era burro velho jamais lhe levariam
a melhor, o coração também já não ajudava, e às vezes implorava a Deus para que
o chamasse a si, ali, nas pedras do velhinho passeio, por entre os malditos
galrachos. Logo os pensamentos de morte, deitava para trás das costas, como se
atrevia a desejar tal coisa se a sua menina precisava tanto dele.
Apressou o passo de volta a casa, como se isso fosse possível, porém a
sensação de andar mais depressa trazia-lhe aos lábios um sorriso, e a lembrança
dos olhos negros que o esperavam em casa deixavam-no mais jovial. A sua menina
era a luz dos seus olhos.
- Bom dia
Amélia, está um dia lindo.
Cumprimentou-a ao entrar no quarto. Tinha encostado a pedaleira
religiosamente a uma das paredes do corredor que dava acesso à casa. Esta
ficava por detrás de um velho armazém de cereais, agora sem vida mas que em
tempos deu de comer a nove empregados e suas famílias. Sinais dos tempos
modernos e da crise que assolou a vida de muitos. Com ele as coisas tinham sido
diferentes, com a doença foi obrigado a fechar o negócio, como descendente um único
filho de que há muito perdera o rasto. Havia o Emanuel, assim se chamava o
filho, cruzado o oceano em busca de aventuras, que o dinheiro do pai proporcionavam,
e um dia nunca mais chegaram notícias. Acreditava que o filho estava vivo, ao contrário
do pessoal da aldeia que há muito o enterrara. Como não estava para que o
apelidassem de velho louco, nas poucas conversas que mantinha sobre o assunto
com algum vizinho, rematava sempre – se o meu filho fosse vivo. Ou então - paz
à sua alma.
- Então minha menina, hoje não
cumprimenta o velho pai.
Ficou sem resposta, mas ia jurar que ela lhe sorrira. Como se não
bastasse o maldito AVC, e o desaparecimento do filho pelas estradas da vida,
brindara-o esta com a doença da mulher. Alzheimer, a maldita doença que tolhe a
memória, e aos poucos a sua menina foi ficando cada vez mais menina, nem sequer
se lembrava de ter sido mãe.
Por entre os pensamentos a vestiu e a sentou na cadeira de rodas, que
empurrou a custo para junto da velha chaminé. Onde ardia um garboso madeiro de
azinho, protegido por uma sólida grade de ferro fundido. Não fosse o diabo tecê-las
e a sua menina cair ao lume.
Estava o tio Horácio a tentar convencer a mulher a engolir as sopas de
leite do pequeno-almoço, quando umas pancadas secas no velho portão da entrada
lhe chamaram a atenção.
- Espera um pouco, vou ver quem é, não saias
daqui.
Pediu ao sair para o corredor, frio e desnutrido de vida. Ainda afagou
a velha pasteleira ao passar.
O homem que o portão escondia, tremia que nem varas verdes, não tanto
pelo frio e sim pela saudade.
- Bom dia…
Balbuciou o velho olhando-o intrigado, iria jurar que os olhos pretos
por detrás das grossas lentes não lhe eram estranhos, tentou adivinhar as
feições que a branca e farta barba escondia, mas o seu coração de velho
conteve-se.
- Bom dia, pai. Feliz Natal.
Estão agora os três, sentados em frente do braseiro, até os madeiros
mais robustos, sucumbem às labaredas, e eles quase sucumbiram à vida e à distância,
porém Deus acaba sempre por escrever certo por linhas tortas, e quem sabe sejam
as dores o verdadeiro inferno, mas a esperança traz sempre uma nova aurora.
No dia seguinte talvez ganhasse coragem para conversar como filho sobre
tão longa ausência, mas era dia de Natal e no Natal é tempo de viver.
Até a sua menina cantarolou, aquela cantiga de embalar com que adormecia
o filho, quando bebé. Porém ao terminar perguntou com um brilho maroto nos
olhos pretos.
- Vocês os dois, quem são?
O Pai e o filho olharam um para o outro e foi o velho pai que respondeu.
- Ninguém, somos ninguém, e ao
mesmo tempo somos duendes, existimos para que tu sorrias.
Ela deu uma gargalhada. Ao longe, na praça da
aldeia o sino redobrava a Ave-Maria, assinalando que já era meia-noite.
E Jesus nasceu.
Antónia Ruivo, Dezembro 2014
Foto: Antónia Ruivo.
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