- Preciso fazer alguma coisa para não enlouquecer. Olha a rua
através dos vidros entreabertos, e repara numa cadeira de rodas que desliza
vagarosa pelo passeio fronteiriço. O seu olhar podia prender-se no homem de meia-idade,
sem pernas, que encontrou na cadeira o seu meio de locomoção. Não, jamais
repararia no homem, afinal toda a sua existência foi comandada pelo ´´ter``
sempre mais e mais, nem que fosse o esqueleto que agora a atormenta!
- Que queres tu, logo
tu que encontrou na luxuria o meio de vida. A sua voz soou tranquila, uma
tranquilidade aparente, o seu íntimo fervilhava de asco, digo bem asco, apesar
de ser seu amigo sempre lhe criticou os devaneios, como se chamar devaneios a
verdadeiras aberrações que normalmente colocavam a vida dela e daqueles que a
rodeavam em causa, fosse normal, mas também, como se a normalidade fizesse
sentido ao olhar o seu rosto enrugado.
- Os retalhos da
minha vida assemelham-se a marionetas, dançam tresloucada mente no meu passado.
Por acaso isso é pecado?
Ou é impressão, ou ele juraria que está prestes a chorar. Conhece-a desde criança e já nessa idade era difícil algo ou alguém arrematar-lhe uma lágrima.
Ou é impressão, ou ele juraria que está prestes a chorar. Conhece-a desde criança e já nessa idade era difícil algo ou alguém arrematar-lhe uma lágrima.
- Manipulaste tudo e
todos em redor, foi assim uma vida inteira, recordo como se fosse hoje o dia em
que encenaste a tua morte, tinhas quando muito vinte anos, nunca cheguei a
saber onde foste buscar a morta.
- Qual morta, mas quem é que morreu?
- Esquece, afinal de que serve remoer recordações, e as que tenho contigo são os meus pecados. Mas podes chorar, vamos chora verás que não dói, ou melhor, quando se chora só a alma dói. Vira-lhe as costas há setenta e cinco anos que a olha de frente, mas está cansado, tão cansado que só lhe apetece dormir.
- Qual morta, mas quem é que morreu?
- Esquece, afinal de que serve remoer recordações, e as que tenho contigo são os meus pecados. Mas podes chorar, vamos chora verás que não dói, ou melhor, quando se chora só a alma dói. Vira-lhe as costas há setenta e cinco anos que a olha de frente, mas está cansado, tão cansado que só lhe apetece dormir.
Ensaia a retirada mas por um breve instante fica indeciso,
qual o caminho a escolher. Se subir os degraus tudo será fácil, mas a
facilidade sempre foi o jogo dela, contudo se retorcer e sair pelos fundos,
sabe que daqui em diante nada será igual, olha-a de soslaio. Pressentindo a sua
indecisão ela ri a bandeiras despregadas, e a sua voz deixa transparecer o desprezo
por tudo aquilo que lhe começa a ser sagrado.
- Sempre foste
um frouxo e sempre me deitastes as culpas. E como te disse preciso fazer alguma
coisa para não enlouquecer. Olha novamente para a cadeira de rodas e finalmente
repara no homem de meia-idade.
- Chega aqui. Como
que movido por um telecomando, ele aproxima-se da janela.
- Reconhece-lo?
-Sim, quando era novo tinha imensos sonhos.
- Não me digas
que a culpada fui eu.
Agora é ele
que começa a chorar, enquanto ela continua a rir e vai falando.
- Soube-te bem
as mordomias, a vassalagem com que te olhavam e obedeciam, acima de tudo
soube-te bem o dinheiro. Ah o bendito dinheiro, também te soube bem sempre que
mentias por mim, sempre que olhavas o mundo de um patamar mais elevado. Olha
para ele não passa de um pobre coitado.
- Cala-te para
sempre. Grita e dá três passos atras saindo pela porta dos fundos.
É de manhã
quando abre os olhos, não, a claridade vem da lâmpada que pende sobre a sua
cabeça, atarantado olha em redor, tudo lhe é estranho, estranha sobretudo a luz
fria que ainda o vai cegar.
- Está a
acordar. Novamente uma voz de mulher. – Senhor Alberto, está a ouvir?
Abre e fecha a boca, mas nada de prenunciar palavra,
como é possível se ainda há pouco falava a bandeiras despregadas.
- Bem-vindo de
volta senhor Alberto, sabe que dia é hoje, hoje é o primeiro dia do resto da sua
vida. Assim o cumprimenta uma mulher simpática de bata branca.
Passaram cinco anos desde o terrível acidente que o
atirou para uma cadeira de rodas, e hoje no dia em que faz cinquenta anos tem
uma enorme esperança no futuro, a reviravolta que a sua vida sofreu fez-lhe ver
que muito mais importante que estatuto, é ser-se feliz e contribuir para que os
outros o sejam também. Com o acidente que quase o atirou para debaixo da terra
soterrou hábitos obsoletos, passou a dar menos importância a bens materiais para
se debruçar sobre os bens da alma. Finalmente pode dizer que é um homem
realizado, e o caricato está na estranha conversa que teve com a sua consciência
há cinco anos atrás. Dizem que esteve em morte cerebral, uma grande peta é o que
é, como pode ter morrido se lembra tim-tim por tim-tim toda a conversa, e da
escada que esteve prestes a subir. Só lamenta não poder falar dessa conversa
com ninguém ou ainda corre o risco de lhe chamarem doido. Se quando ofereceu o
casarão onde morava para fazerem um lar para os Sem Abrigo, e foi morar no
pequeno apartamento de solteiro foi o que foi, imagina se tivesse contado a alguém
que falara com a sua consciência enquanto esteve morto, e ainda por cima já
tinha setenta e cinco anos!
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