segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Maria… Um Conto de Natal...

- Maria: é o meu nome.
- Porquê, Maria?- Retorquiu a criança de olhos arregalados.
- De onde eu venho todas as mulheres são, Maria.
- Ah!... Acho que entendo, é uma espécie de pacto, então… adeus Maria.
- Adeus, menino sem nome.

A criança já não ouviu, tinha-se afastado em corrida arrebatada, restou à mulher um encolher de ombros, ao mesmo tempo, que os lábios desenhavam um sorriso. Olhou uma última vez para o vulto que se perdia no virar de uma esquina e continuou o seu caminho, até desaparecer, também, por entre o nevoeiro do final de dia.

O menino, agora caminhava em passos tardios... Depois do estranho encontro sentiu forças redobradas e havia calcorreando quase metade da cidade. Vagueou sem destino, perdido, por ruas e ruelas iluminadas. Era noite de Natal e ele não tinha para onde ir. Ao fim de algumas horas de euforia, os pés cansados e doridos deixaram de responder ao apelo da alma e passou a ser mais um vulto, por entre a multidão. Na azáfama das últimas compras para a consoada.

Não importa se é Natal. Há muito que perdera a conta aos dias ou às noites. Os dias passam sempre iguais e mal escurece, quem o acompanha, num caminhar desvairado, é o cansaço. Enredado no mesmo procurar, veste-se sempre daquele medo traiçoeiro. Tudo junto, turva-lhe a mente e os olhos cor de mar. Não tem nome, nem família, não tem idade, e todos os seus pertences se resumem a um saco de plástico, onde guarda religiosamente uma caderneta de cromos do Benfica. Também lhe servem de almofada, num qualquer recanto da cidade. Não sabe porque a mantém… Se até ela se torna um peso nas horas em que a barriga se cola às costas.

Tudo o que precisava era de um sítio quente e seguro para passar a noite mas, todas as casas estão iluminadas e todas as portas estão trancadas. Através das vidraças embaciadas pela quentura das lareiras, adivinha os sorrisos e os manjares natalícios, em mesa farta e repleta de amor. Enquanto, ele, nos seus tenros anos nem nome tem. A malta trata-o por olhos tristes e é só mais uma, entre as muitas crianças que deambulam na grande cidade. Ele, tal como os outros, mata a fome como pode, ou como deixam!... Nos dias em que se sente mais afoito encosta-se a uma qualquer esquina e canta uma velha cantiga, que um velho pescador lhe ensinou. Uma balada dolente, fala do mar e do vento e com um pouco de sorte, consegue arrecadar umas moedas e termina o dia a matar a fome, na pastelaria junto às docas. O empregado sorri, já sabe que será dia de engolir todos os pastéis de nata que conseguir.
Noutros dias a sorte é madrasta, esses são os dias em que os rapazes mais velhos lhe roubam as parcas economias. Mesmo assim: agradece a Deus se o roubam sem o sovarem. Querem mais e ele é apenas… mais um menino de rua. Crianças que ao sabor dos tempos deixaram de cativar os transeuntes. Crianças que não tem mais. Só tem as pedras e as arcadas, o desprezo e dois ou três dinheiros, o que é pouco, muito pouco para os rapazes que já andam na ganza.

De tão cansado já não consegue articular passo, também, para quê? Todos os lugares com algum aconchego estão ocupados. Nos respiradouros do Metro acumulam-se corpos imundos, de roupas esfarrapadas, tentando, assim, fugir ao frio. Nas arcadas dos prédios, famílias inteiras dormem resguardados por caixas de cartão, alguns tem cobertores e esses foram bafejados pela sorte. O menino sem nome só tem a roupa do corpo e um saco de plástico, surripiado a um caixote do lixo e a velhinha caderneta dos cromos que, um dia encheu de alegria um outro qualquer menino, bafejado pela sorte, vindo a terminar, tal como o saco de plástico, num caixote do lixo.

Acabou sentado junto a uma árvore no jardim de Alcântara, sobre o tronco duro e rugoso do velho jacarandá, assenta a cabeça, inerte o fraco corpito enfiado no saco de plástico, tirita enregelado. De olhos vidrados em direção ao nada. Até que os lábios roxos, pelo frio da noite, esboçam um ligeiro sorriso e filtrado pela luz do candeeiro acabou de aparecer um rosto conhecido!…

- És tu de novo menino sem nome! A mulher sorriu para ele e pegou-lhe ao colo.
- Olá Maria, que bom que estás aqui. Diz-me... Porque é que do sítio de onde vens todas as mulheres são, Maria?
- Maria é mulher primeira, Maria é  nome de Mãe.
- Então: tu és Mãe? Eu não tenho mãe.
- Tens sim, meu filho, eu também sou a tua mãe e agora quero que te afastes de mim, que deixes o meu colo e vás ver o sol.
- Mas!...É Natal, Mãe, no dia de Natal o sol não costuma aparecer. Não me mandes para o frio de novo, por favor, lá não há sol, ou o que há está ocupado por outro.
- Sabes, as mães não costumam mentir e eu digo-te que neste Natal o sol brilhará. Por isso tens que ir. 
O menino sem nome sorriu, obedeceu e deu um passo em frente, ainda pensou em acenar a Maria mas ela tinha desaparecido…
Não sabe onde está!... Sente o calor aconchegante do cobertor que lhe cobre o corpo, fraco, olha em volta e repara numa grande janela, o sol espreita através do vidro. Nesse instante alguém entra na divisão. O Menino sorri para uma desconhecida de olhos brilhantes que lhe diz:
- Olá o meu nome é Maria e o teu qual é?
- Maria! Como a minha mãe. Eu não tenho nome, mas… chamam-me olhos tristes.
- A partir de hoje terás um nome e vais deixar de ser triste, o senhor doutor diz que já te podes levantar e que podes vir passar o resto do dia de Natal a minha casa. Queres?
- Quero, se não der muito trabalho. E posso comer pastéis de nata?

“”

Alfredo levanta-se do sofá onde se sentara, com cuidado transporta nos braços a pequena Maria que acabara de adormecer. Dirige-se à velha senhora que se encontra no sofá da frente e segreda:
- O que ela ainda não sabe… é que eu sou o rapaz dos olhos tristes, e tu, a sua avó, a Maria que me tirou da rua.
- O que ela ainda não sabe, meu filho… é que tu foste um entre muitos meninos de olhos tristes que eu alimentei e tirei da rua.
Alfredo baixou-se e beijou a testa da velha senhora:
-  Vamos dormir, mãe, já é tarde.- Sorriu e acrescentou.- No próximo ano contarás a mesma história e poderás acrescentar mais um ponto e quem sabe ela já compreenda.
Feliz Natal, Mãe.



quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Ai de mim...

Deixa que adormeça na terra árida.
Que o tojo seja o cobertor dos dias frios.
A aurora seja o sinal que a alma aguarda.
E o vento o companheiro nos baixios.

Deixa… já que a vida é curta e ávida.
Na aridez quase nunca faltam estios.
Não sei se é de mim ou da jornada.
Invento salgueiros, invento os rios!...

Mas a água é salobra, não mata a sede.
Aquela que trouxe ao nascer… Ai de mim!...
Invento as margaridas sem ter jardim.

Deixa que adormeça… começa assim…
A cantilena que a ninguém convence.
Enquanto o relógio anuncia… E já anoitece!




domingo, 3 de dezembro de 2017

Emergente...

Vesti um vestido de chita e nos pés  
calcei a vastidão e a cor das planícies. 
Mas quem sou, afinal? Serei gente, 
campo, ou o ar que vagueia, devagar... 
  
Sou pedinte em terra alheia, cão de guarda!... 
Sou a estrada em que passeia a ilusão. 
Campanário ao por do sol, a maresia. 
Dos dias de Maio. 
Sou mulher…. Irrequieta! 
Até quando quieta! 
Frustração, contradição e até amor, 
quando a dor se sobrepõe ao coração. 
Sou riacho e sou palavra. 
Sou a safra em poesia, sou vazia!... 
De emoções. 
Contradições em dia não. 
Se até o não é paixão! 
  
Vesti um vestido de chita amarela.  
Na bainha desenhei uma caravela, 
e no decote despido de cor; 
o clamor do por do sol! 
Amanhã calçarei uns sapatos cor de terra. 
Seguirei por aí sem norte!... 
Para trás fica a sombra do fim de tarde. 
Nos olhos ficam os pingos de chuva. 
E no pensamento o vazio dos dias frios, 
será lençol. 
Estranha maneira de estar, 
de ver ou de sentir. 
Sou poeta e sei mentir. 
Agora: adivinho esse olhar, 
e aquilo em que está a pensar… 
Enquanto… Começo a rir!... 
  
Dois e dois são três. 
… Brinco com a palavra. 
Mas que safra… Sem pés nem cabeça. 
E tu…. Lês! 
Lês em viés o meu pensamento. 
que a qualquer momento, 
me torna um ser, emergente.  



Palavras ao Vento Suão, Antónia Ruivo