Conto de Natal.
(Porque a vida não espera, e Natal são todos os dias do ano...)
Recostado numa confortável poltrona olhava a parede branca
sem pestanejar, alheio ao cirandar da mulher, que ultimava os preparativos para
a ceia de Natal, tal como nos anos transactos iriam ter a casa cheia. Os filhos
trariam as noras que por sua vez trariam os pais e irmãos, e assim ano após ano
a família aumentava a olhos vistos. Viriam também os irmãos, os avós e alguns
primos e primas. Enfim, uma verdadeira consoada em família, tal como mandam as
regras da boa convivência.
Olhava a parede onde sustido por uma vistosa fita vermelha
pendia um velho e muito valioso retrato de família, que a mulher nessa manhã tinha
esconjuntado do fundo de um baú, guardado há séculos no sótão do robusto
casarão que era morada de ambos. Ao colocar o quadro na parede ela não perdera
tempo e sublinhou ´´ a partir de hoje fica aqui, assim ninguém nesta
casa esquecerá novamente que somos uma família e como tal que prevaleça a
lealdade``.
Na altura não havia ligado às palavras frias da mulher, há muito
que se habituara a ouvir sem ouvir. Ou melhor, ouvia mas não lhe atribuía valor
algum. Se assim não fosse há muito havia enlouquecido.
Estavam casados para mais de trinta anos, desse casamento
haviam nascido quatro filhos, cada qual com a sua vida organizada longe da casa
paterna, e assim acabaram a repartir o espaço numa coabitação umas vezes morna
outras vezes gélida, no icebergue que é uma união onde o amor há muito
desapareceu. Se é que o houvera algum dia, sente que talvez tivesse havido uma
amizade, ou um interesse comum, porque o calor de uma paixão nunca sentiu pela
mulher nem ela por ele, com o nascimento dos filhos cada um direccionou o
interesse pela carreira, numa ânsia tresloucada para acumular sempre mais e
mais. Para eles, amor era dinheiro na conta bancaria. Esqueceram ambos que o
amor é feito de contacto, quer físico quer espiritual. E hoje ambos a meio
caminho da velhice chegam a ter náusea um do outro.
´´ Que ninguém se esqueça que somos uma família`` martelavam
as palavras na sua cabeça. Que família, a família dos dias santos, ou a família
das disputas onde um tentava sempre humilhar o outro e levar a vantagem nessa
humilhação, mau viver tal, que afastava os filhos e os netos da sua
convivência.
Levantou-se ao ouvir a campainha e encaminhou-se para a
porta da rua que abriu pesaroso.
- Boa noite pai, eram os filhos que chegavam
trazendo atrás de si os restantes.
- E ela, perguntou a filha mais nova, - vamos
ver se este ano a festa não acaba em amuo.
- A tua mãe está bem, descobriu que afinal
somos uma família.
- Ah, ainda vai a tempo. Quem sabe tenha
descoberto também que para além de família, todos tem direito a uma opinião, ou
a opções próprias, e principalmente que não existem vítimas, cada um tem a sua
dose de responsabilidade na harmonia familiar…
Após a farta ceia, ele sentou-se novamente na confortável poltrona
olhando os netos que desembrulhavam os presentes de Natal, por entre as suas mãos
geladas tremelicava um envelope que a neta mais velha lhe havia oferecido,
lentamente o abriu e do seu interior retirou um bilhete de comboio.
- É a nossa prenda pai, tens direito a viver o
que nunca viveste, tens direito a ser feliz. E para isso só precisas de um empurrão,
a vida não espera pai. Os filhos em coro.
- E ela, olhou a mulher.
-A avó também tem direito a um, mas com
destino diferente para sermos uma família não precisamos do teu sacrifício, eu
vou viajar com ela. Apressou-se a neta a responder.
Olhou o velho retrato, onde os filhos ainda crianças lhe
sorriam, depois encaminhou o olhar para os homens e mulher na sua frente, que acabaram de
lhe transmitir a esperança numa verdadeira consoada.
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