terça-feira, 15 de março de 2011

Um Forte de Caxias


Às vezes apetece-me enfiar a cabeça na areia, desligo o televisor, não ligo o rádio, nem leio jornais, fecho-me sobre mim mesma, não vale a pena, estou a um passo de ser velha, qualquer dia vou desta para melhor. Por tudo isso vou viver um dia de cada vez.
Às vezes esqueço que sou cidadã de um país em cacos, refilar para quê, tenho que pagar, tenho que comer, tenho que dormir. Irei viver um dia de cada vez.
Às vezes fecho os olhos e recordo todos os estranhos que vi, atados à sela de um cavalo, mãos postas sob a oração silenciosa, sob a estrada alcatroada, a vereda de terra batida, o olhar de um cabo da guarda, o pêndulo em forma de corda grossa que lhes atava as mãos e a liberdade. Às vezes fecho os olhos e recordo aqueles que foram presos, que foram torturados para que eu pudesse estar hoje a escrever livremente aquilo que me vai na alma.
Recordo o tio que nunca conheci, mas sei que esteve em Caxias, os meus olhos ainda não sabiam o que era o mar, mas já sabia que o tio estivera preso em Caxias, alguns anos antes tinha sido trancado numa praça de touros, para que eu pudesse estar aqui, hoje, a escrever o que me vai na alma.
Às vezes fecho os olhos e vejo a tia, vestida de preto, lenço na cabeça, o xaile sob os ombros, os filhos já são homens, e vão para a guerra, puta de vida, que lhe tirou o homem, metade da vida preso em Caxias, a outra metade embrenhado no mato tal Maltês. Havia muitos Malteses calcorreando os caminhos velhos, sabiam que mais cedo ou mais tarde o seu destino era Caxias, e a tia de lenço preso no alto da cabeça, perdeu a vida e a esperança de ser feliz. Puta de guerra que lhe roubou ambos os filhos.
Às vezes enfio a cabeça na areia, sob os grãos que me cegam vejo uma manhã de Abril, uma criança de treze anos que já sabia que havia guerra, que havia fome, que existia um forte que se chamava Caxias, que o tio tinha morrido sem ver um cravo vermelho, que o maldito por quem tinha que rezar mal entrava na sala de aulas, havia morrido, mas que outros malditos eram depostos nessa manhã de Abril.
E aí, recordo o sabor da liberdade, a esperança, os velhos que voltaram, não porque fossem velhos, era o reflexo das paredes cinzentas do forte de Caxias, recordo os seus ensinamentos, as suas palavras ponderadas, estudadas no silêncio do forte de Caxias. Recordo que bebia cada palavra, cada acto, cada soco dado na mesa rectangular, onde eu bebia livros, folhetos, outras bandeiras, e muitos cravos vermelhos, muitas papoilas rubras. Muitos gritos de Liberdade.
Por vezes, sinto uma enorme tristeza não por mim, mas pelos sonhos que se foram num dia de oitenta e nove. Afinal havia muitos fortes de Caxias espalhados por esse mundo, com outros nomes, outras bandeiras e outras torturas. Por vezes sinto uma enorme tristeza pelo sonho que ruiu, pelo medo que senti, pelas vidas que ignorei pelos aleijados, enjeitados, pela repressão com outro nome e outras bandeiras. Pelas tias e pelos tios que nunca vi. Sinto uma enorme tristeza porque já sabia que existiria aquele dia de oitenta e nove, e que eu seria obrigada a bater com a porta, a esquecer que me senti manipulada, enganada, sentia que tinha caído num engodo.
Por vezes, recordo que a partir de um certo dia apenas quis viver a minha vida, com todas as facilidades que o engodo disfarçado de igualdade me deu. Encolhi os ombros, a cada notícia de corrupção, a cada subsídio que me deram para que não produzisse, a cada barco de pesca roubado ao mar, a cada tractor tirado à terra, a cada curso superior sem ter saída profissional, a cada imposto, a cada cimeira europeia, a cada eleição, a cada deixa andar.
Por vezes, apetece-me enfiar a cabeça na areia, mas em cada grão de areia deslizam as mãos atadas sob a repressão de uma ditadura, o eco é enorme, o eco das vozes de todos os tios que não conheci, mas que sei que sonhavam, olhando o mar através de uma fresta de um forte que se chamava Caxias, com dias de liberdade. Essas vozes murmuram-me na sua voz pausada de homens que nunca baixaram os braços. Para que eu possa estar a escrever o que me corrói as entranhas. Murmuram-me estamos-te a cobrar o teu virar de costas, acorda, é hora de pegares o boi pelo cornos.



Murmuram-me ao coração
Sabes, talvez tenhas razão
Talvez te impingissem, bandeiras
Esconderam-te muitas trincheiras
Talvez tenhas razão
Há sempre muita confusão
Quando uma criança nasce
Quando a ceara floresce
O joio desponta no rego
Mas afinal o desassossego
Faz parte de um nascimento
Nunca esqueças que alimento
 Não é só o pão para a boca
Há gente de cabeça oca
Outros de palavras bonitas
Aqueles que roubam e fintam
Que até dançam o tango
Outros são voz de comando
Pensado encher a mula
 Não esqueças é contra natura
Renegar a tua sorte
Portugal do Sul ao Norte
Desbravou uma bandeira
Unido cerrou fileira
Contra um forte de Caxias
Por mais negros que sejam os dias
Nunca lhe vires as costas
Portugal é o caminho
De um povo que se quer uno
É grande o infortúnio
Todos, tem a sua culpa
A hora é de labuta
Não pensar em facilidades
É hora, unam-se vontades

Porque não foi em vão
Aquela manhã de Abril
Em que choveram cravos mil
E as grades tombaram ao chão.







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Palavras ao Vento Suão, Antónia Ruivo