terça-feira, 1 de novembro de 2016

Era uma vez a Perfeição… Um conto de Antónia Ruivo.

Era uma vez a Perfeição, morava num lugar maravilhoso, repleto por um tapete verde, de um verde translúcido, que a Certeza tecera. Nas noites em que o luar beijava a terra e nela depositava uma luz pálida, mas sedutora.  
A Perfeição tinha tudo para ser feliz, ainda assim, existia no fundo dos seus olhos uma pequena Sombra. Ela não compreendia o seu significado e verdade se diga, eram mais os dias em que a esquecia por completo, do que aqueles em que lhe prestava alguma atenção.
Era um ser sobrecarregado de afazeres, umas vezes era a Auto-estima, quem lhe dava uma trabalheira daquelas, outras, a Altivez tratava de lhe roubar o tempo!  
Vestia, vestidos muitos caros, que um costureiro famoso costurava pela tardinha. Todos os seus vestidos eram de seda, da mais Pura que existia no pequeno reino translucido. Morada de família, onde há muito ela era a única habitante. Ela e o costureiro, todos os outros se fartaram das Luzes da Ribalta! Haviam partido; faz muito tempo. Como companhia dos seus dias de Primor, a Perfeição tinha um papagaio, de papel. Os verdadeiros dão muito trabalho e fazem um chinfrim danado!
Hoje de manhã ao acordar a Perfeição sentiu uma fraca indisposição, levantou-se cambaleante e assomou-se à janela, para seu espanto o papagaio havia desaparecido! Correu ao redor da casa mas do seu companheiro de cavaqueira, nem sinal! Contrariada, dirigiu-se à cozinha e fez um chá de camomila, na esperança de que a indisposição passasse.
Ele voltava… já não era a primeira vez que desaparecia, longe vai o tempo em que isso a deixava deprimida. Da última vez, estivera fora três dias, três dias inteirinhos, em que a Perfeição nem sequer dera pela sua falta, tão entretida com uma nova contenda. A de julgar todas as Atitudes do costureiro.
Não é que o desgraçado naquele mês ao invés de costurar vestidos, que era só o que ela gostava de vestir. Decidiu costurar calções! Ainda por cima, de uma ganga surrada e esburacada. Bem que o infeliz lhe garantira ser a última moda, até jurara a sete pés que a herdeira de um trono longínquo, não vestira outra coisa naquele verão. Mas não a conseguiu convencer.
Alguma vez; uns arcaicos calções, alguma vez… podiam competir com os seus vestidos de seda. Jamais.
São agora três da tarde e está sentada no alpendre, continua indisposta, mas aos poucos tem vindo a melhor, muito ajudou a altura em que se dirigiu à casa de banho. Quando se olhou no espelho achou-se um pouco amarelada, ainda assim; estava deslumbrante. Os cabelos cor de mel cobriam-lhe os ombros e assentavam com a destreza de uma pluma no meio das costas. Lavou a cara, penteou-se, pintalgou os olhos de verde-esmeralda e empoou as bochechas com uma cor carmim, a terminar, pintou os lábios de vermelho, framboesa.
Regressou ao quarto e decidiu vestir um vestido negro, o único que possuía dessa cor, enfiou uns sapatos cor de prata e saiu para a rua.
Mal dera dois passos e a Indecisão tomou de assalto o seu espirito. Coisa pouco habitual! Tinha tudo o que uma pessoa poderia desejar, nada lhe faltava, até a Soberba lhe sobrava na medida exacta às suas necessidades. Tinha tudo, só não tinha amigos!
Nem o costureiro era seu amigo, só a bajulava pelos trocos que lhe dava a ganhar. Quanto ao papagaio de papel, era um infeliz, ao qual faltava o carreto para levantar altos voos. De repente; foi tomada por uma repentina Decisão…Iria até aos limites do seu reino… iria fazer o que nunca tivera Coragem para fazer. Olhar com atenção para o outro Lado da Moeda.
Andou mais ou menos dois quilómetros, levou mais ou menos duas horas percorrer a distância. Talvez haja quem pense que duas horas para dois quilómetros, é tempo demasiado, mas Tempo é coisa que nunca lhe falta.
Gosta que tudo esteja nos eixos, impensável dar um passo e logo a seguir o outro. Primeiro mexe ao de leve a planta do pé, depois ensaia meio segundo e levanta o calcanhar, não sem antes assentar bem os dedos no chão, e só depois dá o passo final. O que são duas horas se os seus passos saem sempre Perfeitos!
Ao chegar aos limites do reino quase esbarrou na Curiosidade, corria solta e leve pelos campos em redor das papoilas, vermelhas. E foram elas, as papoilas, que a tiraram do sério!
Como podia ser? Aquelas plantas agrestes, ondulantes há mais pequena brisa. Que murchavam ao ínfimo raio de sol. Bastava que incidisse por mais tempo de um lado, do que do outro. Como se atreviam, se dormiam ao relento, debaixo de chuva até, como se atreviam a ter um vermelho mais aveludado, do que os seus vestidos de seda?
Mas, como uma senhora não dá atenção a exibicionismos, fingiu que não as viu e seguiu em frente. De nariz em riste, ignorando a Curiosidade que se aproximara para a cumprimentar.
Andou mais um pouco e nem queria acreditar, no que os seus olhos estavam a ver! No lado norte de um descampado uma rapariga de olhos de avelã, despenteada e sardenta, brincava com o que parecia ser… O seu papagaio de papel!
Pensou em se abeirar, em gritar, afinal, ele era o seu papagaio. Mas ao invés disso, escondeu-se atras de uma moita e ficou a olhar a brincadeira. A sua atenção depressa descaiu, nas roupas que a raparia vestia. Uma saia aos quadrados desbotados e uma camisola branca. Branca… qual branca… amarela, de tanto ser lavada!
Nos pés, a rapariga calçava um pouco de nada, tao diferentes eram aqueles pés! Ao saltarem ao redor do papagaio pareciam girar com um pião, livre e solto pelas ravinas da vida! Diferentes dos seus, sempre tão atinados no andar.
Naquele instante, desmaiou… Aquela brincadeira, só pelo prazer de brincar, foi demais para a Perfeição.
Ainda hoje desconhece o que lhe aconteceu, ao certo! Enquanto permaneceu desmaiada, nem sabe quanto tempo esteve desmaiada. Sem saber porquê, pensou que era o fim, que o seu tempo havia chegado. Afinal o papagaio de papel sempre lhe dissera que um dia a Morte vem, e para piorar tudo, chega e não bate à porta, entra de rompante, sem dar Tempo a nada!
Não sabe, quanto tempo esteve desmaiada. Como companhia nesse momento difícil teve a Sombra, que habitava no fundo dos seus olhos. Sem que esperasse tal atitude… deixara de ser uma Sombra Exígua e tomara a proporção de uma Nuvem Espessa, acinzentada e rodeada de pequenos pontos de Interrogação. Tudo o que recorda é que a Sombra lhe segredara.
   - Aprende com eles, vou dar-te a Oportunidade de conheceres o que realmente conta, volta e entra na brincadeira, já é tempo de aprenderes que a perfeição não existe.

Nesse dia a Perfeição, descalçou-se dos sapatos de cristal, dos vestidos de seda, e enlameou-se no barro. Brincou ao lado da rapariga da saia aos quadrados e do seu papagaio de papel, que sem saber de onde lhe tinha vindo, um volumoso carreto, voava pelos céus em voo rasante ao infinito. Enquanto cantarolava uma canção sem nome.

Quem não ficou nada satisfeito com esta Transformação foi o costureiro, que perdera o ganha-pão, e ao invés de Aprender outra profissão, encheu-se de Orgulho e passou a mendigar o pão com que alimentar os ossos, flagelados pelo ofício do corte e da costura.




Sem comentários:

Enviar um comentário

Palavras ao Vento Suão, Antónia Ruivo